Esta grande chatice
06.02.2008,
Paulo Varela Gomes
"Às vezes são crianças pedintes, outras vezes cães abandonados ou vadios. Os miúdos batem-nos à janela do carro num semáforo e tentam vender-nos uma revista ou lavar-nos o pára-brisas. Há aqueles que sorriem com uma escandalosa alegria. Outros olham para nós sem perdão. As raparigas trazem quase sempre uma criança mais pequena ao colo e têm já a indiferença magoada de quem foi condenado a uma pena perpétua. Os cães que passam, aquele desesperado para aqui e para ali à procura do dono que fugiu talvez há muito tempo, o outro, vagaroso, cheio de dores, em busca de um sítio onde morrer em silêncio, olham através de nós para a vida que nunca tiveram. Têm cores pardas e vivem nos cruzamentos. Reconhecemos nos olhos das crianças e dos cães coisas que já sentimos ou podíamos sentir: cansaço, desorientação, ansiedade, uma indiferença calcinada. Temos mais dificuldade em perceber o que sentem outros habitantes infelizes da cidade: os pássaros assustados que voam entre a rua e os seus ninhos precários nos terraços, os pombos sujos das sarjetas, os ratos que se esgueiram furtivamente entre caixotes de papelão para levar comida aos filhos. De entre todos, só as crianças e os cães têm olhos que podem fazer baixar os nossos. Estamos imunizados em relação aos pedintes adultos da espécie humana. Há muito tempo que são precisos efeitos especiais para que suscitem a nossa atenção, para já não falar da nossa piedade: malformações genéticas ou auto-infligidas, vestígios de doenças, o pequeno cartaz ou panfleto explicativo com referência a tragédias pessoais ou colectivas. As crianças e os cães, todavia, não conseguem articular o seu desespero em forma de um discurso qualquer que o torne suportável para eles e para nós: o pedido de auxílio, o protesto, o insulto. Essa inocência ou silêncio torna mais difícil - muito mais difícil - o nosso encontro com a miúda dobrada ao peso sufocante de seis anos de miséria, ou o cão que não consegue compreender, no barulho infernal da rua, porque é que ninguém lhe faz uma festa.Uma vez no Rio de Janeiro passei por um miudito deitado numa sarjeta seca de uma curva muito apertada. Os carros passavam-lhe as rodas rente à cabeça, um após outro. Ninguém fazia menção de parar. Dobrei-me para ele e reparei que chorava convulsivamente. Tirei-o da rua a custo. O patrão tinha-o mandado fazer um pagamento mas tinha sido assaltado. Estava ali à mercê da sorte. Não sabia se queria morrer mas também não sabia como continuar a viver. Às vezes gostaria de andar com uma camioneta muito grande a recolher todas as crianças, cães e outros seres vivos vadios que não sabem falar. Depois levava-os todos para as Maldivas, os Açores, ou Madagáscar que sempre é maior, e deixava-os à solta sem trabalho nem escola, sem horários e sem regras de trânsito, sem donos e sem patrões, para que andassem no mar e nos bosques. Fá-lo-ia apesar de saber que um dia alguma coisa haveria de correr drasticamente mal e Deus teria de correr com eles, recomeçando esta grande chatice toda outra vez."
PVG diz as coisas à medida que estas lhe assaltam a alma. Aquilo que a maioria de nós não diz - com medo de sermos mal interpretados, polémicos ou simplesmente porque não nos parece bem - PVG diz e surge a pedrada no charco. PVG mete no mesmo saco as crianças e os cães esfarrapados. Pessoalmente, talvez por nunca ter sido pai, por nunca ter sentido na pele a dor ou o amor incondicional de uma criança, sempre me fez mais confusão os cães vadios do que as crinaças. Para mim, as crianças pedintes são tão inocentes como os pais pedintes. São pedintes, pedem, vivem o dia-a-dia no limiar da existência. O que distingue, para mim, as crianças dos pais pedintes não é a inocência. Essa, se é que existe entres os intocáveis na Índia, perde-se aos 2, 3 anos. O que distingue é a raiva. A raiva que cresce e instala-se e afasta a humanidade do olhar, dando lugar ao de uma animal domado à força da dor, do sofrimento, dos pontapés e da comida podre, da rejeicção mais completa e hedionda dos seu semelhante. É a ausência de raiva no olhar das crianças que me deixa desconcentrado. Quanto aos cães vadios, simplesmente não entendo porque é que não os esterilizam.
Friday, February 08, 2008
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4 comments:
sidh, o comentário que vou fazer não se reporta ao caso da Índia em especial, que não conheço, mas às realidades que vou conhecendo. Longe de mim avaliar a tua opinião ou a do Paulo Varela Gomes, mas partilho a sua visão, de uma confortante humanidade e de um sonhador (e falo do "sonho" fazedor). Essas crianças são filhas de pesadas heranças, fruto de fatalidades ou de vontades distorcidas, já os animais, sobreviventes por instinto, encontram-se numa sociedade multifacetada que ora os deixa simplesmente sobreviver, ora os tenta humanizar, ora lhes dá um pontapé. Andam ambos a tentar perceber onde e como estão, a adaptar-se a regras e indiferenças... É nos olhos das crianças e dos animais que sinto o julgamento da espécie a que pertenço, e por vezes a vontade é ir com eles para Madagáscar.
Falando de adultos, penso muitas vezes o que move um sem abrigo, dia após dia, o que o faz não pôr termo à vida. Não será decerto uma religião, será algum sentido de vida vivida religiosamente, que ainda não consegui alcaçar, mas que em última análise é de algum altruísmo.
Hmm...sonho fazedor, bonita expressão. Eu sinto-me julgado mais pelos olhos dos adultos, que expressam a raiva e a falta de esperança, do que pelos das crianças. Aliás, sinto-me julgado pela Índia inteira, sentado aqui confortavelmente no ocidente. Quanto aos meus sonhos, ou ideais "fazedores", não serão tão nobres como soltar as crianças e os cães em Madagáscar. Para mim, bastava esterilizar os cães e convencer os turistas que visitam a Índia a não darem dinheiro às crianças.
Muito bom.
Dás-me licença, levo daqui o artigo po PVG.
Estou mais próximo da utopia de PVG do que do que do teu pragmatismo desencantado -inconformado, não obstante.
Talvez seja, por ora, um pragmático desencantado...mas a morte é transversal a tudo isto. E falta-me a religiosidade para ser altruísta.
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