Nota: Para aligeirar a onda desta cena, proponho excertos de um dicionário que circula entre certos alfarrabistas desencantados com a sociedade contemporânea. Começemo então por uma letra, como no jogo, que pode ser, pode ser... a letra "R", logo a seguir à introdução.
Dicionário Enciclopédico de Braguítico / Vianês – Português. Compilado pelo Apóstata Jacó Mingoila e baseado nas Histórias Daqueles Tempos.
Introdução
Embora o Viana e o Braga, conhecidos na história respectivamente por Imperador-Voóc e Rei-da-Macacada, tenham feito aparições na praça pública em alturas diferentes do famigerado campeonato, ambos deixaram suas hostes de conversos e discípulos, alguns dos quais foram eleitos apóstolos. Desses dias messiânicos – primeiro com o Imperador, e, mais tarde com o Rei (quando este retornou em apoteose do Brazil) – sobraram diversos mitos e memórias que hoje-em-dia fazem parte do subconsciente colectivo do grupo etnológico identificado vagamente como o Pessoal.
Ambos se concentraram na criação de uma linguagem e ritos iniciáticos para sustentar um sistema de crenças e superstições. É sobre isto que trata este dicionário.
R
Raiosmucôzam – (V.) Expressão de espanto polivalente, como o vulgo “xalones”. Note-se porém a origem popular da expressão, obviamente derivada do “raios-te-partam”. Através de uma inversão do sujeito, a expressão adquire um sentido de autocomiseração, podendo-se supor uma dissociação no ser epistemológico entre o consciente e inconsciente (ou involuntário) do sujeito. Contudo, quando articulada numa frase a imprecação tanto pode recair sobre o sujeito (ex.: “Raiosmucôzam a mioleira”) como sobre outros (ex.: “Raiomucôzam a velha”).
No léxico Vianês, esta é uma das expressões predilectas e empregue constantemente, sem dúvida por estar intimamente associada às míticas investidas culinárias do próprio Imperador-Voóc. É sem dúvida inesquecível a passagem 2:14 do livro da Cumieira, que reza: “[...] e o Imperador invectivou: ‘Raiosmucôzam este bife’ e acto contínuo soou grande trovoada pelos montes e vinhas daquele lugar transmontano que entrou pelas frestas entre as telhas da cozinha onde estávamos e então todos sentimos um arrepio na espinha e o Imperador voltou-se para nós com os olhos muitos abertos e um sorriso nervoso e soltou um “iiiiih quié isto?” pousando a amassadora na tabuazinha sobre a banca de xisto e dando um gole sorrateiro no copo de vinho próximo [...]”
Rei-da-Macacada – (B.) Nome comum do Braga após a sua mistificação pelos discípulos. As origens deste nome perdem-se no nevoeiro das memórias da sinagoga de Coimbra, onde o Rei começou a sua corajosa pregação. Mas talvez estejam relacionadas com as características daquele espaço, que se assemelhava bastante a um jardim zoológico. Inclusive, todos estão de acordo que havia muitas aves raras a pavonearem-se pela sinagoga e que o Rei parecia o único que realmente dominava este meta-território, sempre no limiar das emoções humanas e da demência animal. Ninguém esquece o modo como o Braga andava pelos corredores da sinagoga, ou pela alta de Coimbra, completamente confiante de que era o Rei de algo impalpável embora absolutamente irresistível e o modo como, se alguém lhe tivesse de facto colocado uma coroa na cabeça (Braga Braguiticus Rex Departamenticus), lhe teria assentado como uma luva. Mas a história quis que essa coroa fosse um halo invisível para todos excepto aqueles que se converteram ao Proto-Braguismo.
Renúncia à Sinagoga de Coimbra – (B.) Episódio histórico da vida do Rei eternizado em diversas obras de arte e histórias mitológicas, constante no Livro do Alto Deboche (3:17) . Brevemente, centra-se numa fase de confusão espiritual por parte dos Proto-Braguistas, devido ao facto do seu messias estar a atravessar um grave conflito interior entre a sua vocação Coimbrã e o apelo e magnetismo que alumiava da Sinagoga do Porto (que entretanto tinha chamado a si grande número de seitas messiânicas, entre as quais a mais influente era, sem dúvida, a do Imperador). O Apóstolo Ricardo, braço direito do Rei e por ele mais querido entre todos os discípulos, tinha já debandado para a Sinagoga nortenha e havia rumores de que pregava um evangelho algo diferente daquele estabelecido pela ortodoxia Proto-Braguista. Falava-se até de heresia embora todos esses rumores vieram mais tarde a esvanecer (e o Apóstolo confirmou depois várias vezes o seu amor incondicional ao Rei). Os acontecimentos decorrentes da renúncia coimbrã são amplamente conhecidos: numa célebre noite, o Rei reuniu todos os discípulos perto da praça republicana, proferiu as míticas palavras “Bute Pró Siza”, e entre eufóricas aclamações rumaram todos para a Sinagoga, num último ímpeto de fúria vingativa (qual Cristo Nosso Senhor a expulsar os vendilhões do templo), e foram passando pelas tascas habituais. Como era final de época, a sinagoga estava semi-deserta. Na sala das maquetas sagradas, o Rei denunciou todo o sistema teológico Coimbrão e, por entre a emoção e transe colectivo dos discípulos (também já um pouco ateados pelo vinho), ordenou a destruição das maquetas. E então houve uma verdadeira razia e calamidade naquela parte da Sinagoga e há quem argumente que o auge da Renúncia tenha sido o momento em que o Rei defecou sobre uma maqueta de um noviço qualquer e disse “Este já tem dezasseis!”.
Nesse mesmo verão, o Rei rumou para a Sinagoga do Norte, acompanhado pelos Apóstolos Miguel, Hipólito e Jacó e assistiu-se a uma verdadeira refundação da crença Braguista.
Thursday, November 24, 2005
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