Saturday, September 01, 2007

Indo-Europeu (Público 10 Agosto 2007)

Quando partimos em viagem, todos emalamos um conjunto de expectativas e pré-conceitos face ao destino que nos espera.

De um modo geral, quando um europeu resolve viajar até à Índia, as suas expectativas estão ao rubro. E raramente regressa à pátria sem ter experimentado sensações fortes, mesmo contraditórias. Lembra-se de ter estado revoltado, frustrado ou mesmo enojado (ou efectivamente doente); mas também recorda momentos de liberdade ou mesmo paz interior.
De igual modo, quando um indiano viaja para a Europa, fá-lo com uma panóplia de imagens e ideias pré-concebidas. Salvaguarde-se a diferença de que, por norma, apenas os Indianos de uma certa condição sócio-económica têm dinheiro para passear por Londres, Paris ou Roma, formando um grupo de turistas mais educados e sóbrios do que grande parte da “ralé” inglesa ou americana que aterra em locais como Goa ou Kerala, sedenta de festas e substâncias tóxicas.

A minha ascendência Indo-portuguesa e os períodos em que vivi na Índia possibilitaram-me conviver e viajar com vários portugueses e ocidentais naquele subcontinente; de igual modo, convivi e viajei com vários indianos por Portugal. E entre estes olhares cruzados de que quem vem de longe, ocorre um fenómeno curioso: ambos os grupos de viajantes consideram os seus anfitriões uma civilização “velha”, às vezes mesmo “decadente”.


Mas por razões diferentes…comecemos pelo viajante - ou potencial viajante - indiano. De um modo geral, os indianos projectam nos países da Europa Ocidental os pré-conceitos e clichés associados aos ingleses: uma sociedade conservadora e fechada, que tolera os imigrantes desde que estes não ponham em causa os rituais sagrados da pax brittanica e a pureza do seu country-side. Assim, a Europa apresenta-se como um tranquilo jardim-museu, onde as cidades e a população não crescem – antes, envelhecem. Algures entre o esforço colonizador imperialista do sec. XIX e as duas guerras mundiais, a Europa exauriu-se de vitalidade e de novas ideias, optando por fechar-se sobre si própria. Presa ao passado, que evoca nostalgicamente em cada calhau ou canteiro, protege aquilo que ganhou e construiu numa imutável e sublime reciclagem de tradições.
De facto, para o indiano comum, não existe local mais estático e “uneventful” que a Europa Ocidental: não há guerras, revoluções ou mesmo transformações; não há fanatismo religioso nem causas apaixonadas; e o fenómeno de massas mais evidente é o êxodo dos próprios europeus durante as férias para escapar a toda essa realidade deprimente.
Para o viajante europeu, aquilo que mais cuidadosamente leva na bagagem é a noção de que a Índia é uma civilização muito antiga, ancestral. Tão ancestral que a religião e o espiritualismo ainda detêm uma influência decisiva no dia-a-dia das pessoas. Para além disso, leva consigo uma porção variável de orientalismo romântico, mais ou menos condicionado pela Discovery channel ou pelos Lusíadas.
Poderá ainda existir na mala uma certa dose de “paternalismo civilizacional”, uma tendência por vezes subconsciente que pressupõe um “atraso” da Índia perante a Europa em termos de progresso material e moral, apesar de ser - ou precisamente por ser - a cultura mais arcaica.

Partem assim munidos os dois viajantes em direcções opostas, cruzando-se naturalmente nos aeroportos, onde se perscrutam com curiosidade mútua.

De regresso ao lares, passados 15 dias, 3 meses ou 1 ano, quanto do que trazem na bagagem são bugigangas e quanto são memórias preciosas experiências enriquecedoras ou amizades partilhadas. As variáveis são demasiado grandes para qualquer conclusão.
Mas arrisco o seguinte: não são as emoções fortes que caracterizam as reacções dos indianos em trânsito pela Europa. Antes, é recorrente a sensação de tranquilidade e bem-estar, consequência da elevada qualidade de vida e smooth funcitioning da sociedade em geral. Mas o clima e a comida (e a frieza em geral?) tornam-se quase insuportáveis…simplificando, a Europa correspondeu às expectativas (que não eram altas de qualquer maneira), consolidando a auto-confiança e apego aos valores da mother India.
Já o europeu volta com a mala recheada de emoções fortes sendo necessário, por vezes, o repatriamento forçado sob o efeito de sedativos. Raramente fica indiferente perante aquilo que viveu, embora possa decidir nunca mais voltar àquele “país miserável”. Contudo, é mais frequente ter tido um “experiência única” na Índia e ficar com vontade de lá voltar.

Já assisti às mais diversas reacções provocadas por viagens à Índia. Vi-me envolvido em situações-limite, assisti a algumas cenas de violência física ou psicológica que facilmente poderiam ter sido evitadas. Assim, não consigo deixar de escrever duas ou três dicas para aqueles que decidirem encetar viajem.

1. É fundamental interiorizar, antes de partir, que a civilização ocidental não é superior à Indiana; isto apesar do aparente progresso, ordem e bom funcionamento de uma face ao aparente caos, ruptura ou atraso da outra. São duas maneiras diametralmente opostas de estar na vida mas que se complementam e que participam, ambas, de sistemas de moral igualmente válidos.

2. O ser humano destaca-se dos outros animais pela sua capacidade de adaptação a meios diversos. Na Índia, para enfrentar problemas e desafios do quotidiano, é fundamental que o europeu aprenda a pensar como um indiano. Só assim porá de lado o seu sistema de valores e juízos para pensar em moldes mais pragmáticos. Esta alteração fundamental de atitude não significa baixar os braços perante a resolução de questões ou mesmo injustiças que afectem o viajante. Antes, significa não ter medo de se deixar contaminar por uma maneira essencialmente diferente de pensar e encarar a vida, no sentido de encontrar um equilíbrio mais estável e saudável perante a relativização dos problemas e angústias pessoais.

3. Estabilizadas as duas premissas anteriores, o resto desenrola-se com naturalidade. A revolta, a frustração e a impaciência que frequentemente dominam o viajante evoluem do plano pessoal e são relativizados face aos problemas e frágil equilíbrio da sociedade em geral. O viajante deixa de se posicionar sempre do lado de fora da sociedade ou contra ela para sentir que faz parte dela e dos problemas que a afectam.

Há uma máxima Hindu que diz: as três maiores virtudes do homem são: saber ouvir, saber esperar e saber jejuar.

Bem-aventurado o ocidental que sabe ouvir, esperar e jejuar na Índia.

9 comments:

Anonymous said...

Apenas uma pergunta, ou uma pequena provocação.
A sociedade indiana não está ainda segmentada por uma hierarquia doutros tempos, em que algumas pessoas nascem com o azar terrível de não poderem ser iguais àquelas que passam ali mesmo ao lado?
Não temos mais que provas de que no Ocidente um triste coitado, apesar das dificuldades, pode vir a alcançar objectivos como qualquer outro? Mesmo que depois continue triste...
Muitas mais coisas haveria para questionar, mas parece-me que este assunto é suficiente para dar cabo do exotismo indiano, não?

Anonymous said...

Não...Entre outros, é precisamente no assunto das castas - que continua a emocionar os ocidentais - que assenta o exotismo da Índia.
Questionar? Sim, sempre, tudo.
Em Portugal, também não vivemos numa sociedade segmentada?
Não sabemos se a Índia caminha para o renascimento ou para o abismo, mas uma coisa é certa: não podemos ficar indifrentes. E indifrentes não significa julgar- antes, tentar compreender para além das aparências.

formiga atómica said...

Lembras-te daquela conversa no casamento... Da prepotência dos valores ocidentais... No alto do pedestal da cultura europeia se questionam hierarquias das quais nada sabemos, nem nos interessam verdadeiramente saber. Basta serem do outro lado do mundo!

Anonymous said...

Sim, lembro...
Se calhar, as pessoas encontram as causas para a pobreza, miséria e injustiça no terceiro mundo apenas naquilo que consideram ser os atrasos ou defeitos de sociedades e culturas intrínsecamente diferentes da nossa.
Esqueçem-se do modo como as potências ocidentais exploraram e agrediram tantos países em todo o mundo. A miséria, a instabilidade e a guerra nesses países sustentam aínda os nossos luxos... Até quando?

honey white said...

Faltou-te, na minha opiniao, uma dica muito importante: Nao criar expectativas. Muita gente com quem falo que pensa la' ir ou que encontrei la' (estes ja' desiludidos) criou um imenso sonho 'a volta da India, do seu misticismo e credos, das historias de palacios e tesouros e quando la' chegou, ou chegar, depara-se com a realidade, que, nao deixando de ser fantastica, nao e' o que idealizaram.
Sempre que viajo e' o que faco e, ate' hoje, todos os lugares onde estive me surpreenderam e envolveram, uns mais que outros claro, mas isso tambem se deve ao meu feitio.

Anonymous said...

Acho difícil para um português viajar para a índia sem criar expectativas...mesmo eu, que já estive lá meia dúzia de vezes, continuo a (re)criá-las :)

Anonymous said...

jaipuriano,

Parece-me antes de mais, e se quisermos comparar as duas visões, de lá para cá e vice-versa, que há uma enorme dose de ignorância de ambos os lados. O mesmo acontecerá se fores à China ou mesmo outro local não-europeu com forte carga histórica. Os europeus são incrivelmente euro-cêntricos, é verdade, mas os mesmos fetiches residem nas memórias da grande maioria do lado de lá, e se calhar isso é perfeitamente normal.
Infelizmente o que se espera da India aqui na europa é um misto de gastronomia condimentada e um território tropical polvilhado por templos com imagens eróticas, natureza luxuriante e miséria abundante, legado que nos deixou o colonialismo britânico, responsável pela lamentável redução, ainda hoje, do tantrismo a um livro de posições sexuais.
Mas o inverso também se verifica. Sem querer comparar civilizações, não me parece que a Europa seja um local estático. O pensamento aqui também evolui, no entanto as suas raízes são profundas e portanto a sua velocidade de expressão pode ser enganadora, para quem achar que já conhece tudo.

Um abraço e espero poder visitar o sub-continente brevemente.

Unknown said...

aha, finally in the blog....
well, I still don´t like that part very much that wasn´t also in the newspaper which is giving those "dicas". It is different to tell those to someone during a conversation, but written down it is becoming too strong and slightly arrogant.

But besides that I´m expecting and hoping to read many more texts like this by you here - or in papers! :)

Anonymous said...

Gustafá:
A maior parte dos britânicos durante o período do Raj de facto reduziam o conhecimento da civilização Indiana aos moldes e parâmetros com os quais conseguiam comparar, julgar e apropriar esse conhecimento. Embora tivesse havido excepções...
A imagem (leia-se clichés ou pre-conceitos) que a maior parte do mundo tem sobre os europeus tem coisas más e coisas boas. Muitas não têm fundamento, mas outras assentam num fundo de verdade. Por exemplo, a ideia que os europeus são racistas. Acho que depende esencialmente de nós desfazer essa parte da imagem.