Macaulay21.01.2009
Paulo Varela Gomes
Os ingleses nem sempre foram os dominadores arrogantes e bêbados que, enquanto tal, passaram à história e ao folclore do Ocidente e do resto do mundo. Houve tempo em que eram como todos nós: deixavam-se enganar, faziam disparates e chegavam a beber vinho em vez de cerveja. Mas isso foi antes do início do século XIX. De facto, concordam quase todos os historiadores que, por esta altura, os ingleses, pelo simples facto de que dominavam o mundo, convenceram-se de que eram uma raça de senhores e tornaram-se, ipso facto, odiosos e eficientes. Foi então que começaram a desprezar os portugueses por sistema. Já os (nos?) desprezavam aleatoriamente, mas, a partir dos primeiros anos de Oitocentos, passaram a considerar os portugueses sempre piores que pretos: mestiços, ou seja, preguiçosos, incompetentes e, para cúmulo, católicos. É exemplar a prosa de Richard Burton, o explorador e intelectual que escreveu sobre Goa em 1859. São algumas das mais odientas linhas alguma vez escritas contra o Portugal decadente, tropical, pobre, de pele escura e uniforme roto que alguma vez foram postas no papel. E não foi o único, longe disso. O governo que, com o Ultimato de 1890, deu praticamente dez minutos à administração portuguesa para deixar de armar em grande potência em África habituara-se há muito a considerar os portugueses uma raça inferior.É por isso que custa muito ver o triunfo dos maneirismos ingleses nas partes da Índia que já foram portuguesas ou onde a cultura portuguesa em tempos deu cartas: não é só o facto de toda a gente falar inglês; são as festas, sessões solenes e casamentos organizados à inglesa, com gestos, falas, rituais aprendidos em escolas de orientação inglesa, o triunfo absoluto do imperialismo britânico na vida social de milhões de indianos - incluindo os da antiga Índia portuguesa. Os media contemporâneos (dominados por uma cultura americana com masala) vão provavelmente dar cabo disto. Mas até lá todos os dias aturamos o fantasma triunfante de Thomas Babington Macaulay (1800-1859), o político inglês que começou a construir a Índia britânica. De cada vez que, num casamento em Goa, o compère grita em êxtase: "Let's have a big hand for...", ou "Please raise your hands for..." ou outra frase feita inglesa, eu, vivendo em Goa, um sítio que eles consideraram o exemplo do falhanço de Portugal como nação, eu, entredentes, amaldiçoo Macaulay. Mil vezes.E depois lembro-me de que quem promoveu a educação em inglês nas escolas de Goa no século XIX foram as autoridades portuguesas - que, liberais ou republicanas que eram, partilhavam com os ingleses a ideia de que o velho Portugal era tão decadente que nem a língua se lhe aproveitava, ideia através da qual se irmanavam com a elite goesa, todos, goeses e portugueses, olhando com inveja a obra a que Macaulay deu origem na Índia britânica, esquecidos dos insultos ou, pior, assimilando-os, curvando a cerviz, dando aos dominadores o pleno domínio. Let's all put our hands together for Macaulay!Richard
Burton disse no livro citado por
PVG (publicado em 1851) que não haveria em toda a Ásia raça mais feia e degenerada do que a resultante da mistura entre indianos e portugueses. E, no mesmo livro, é esse o
leitmotif para explicar tudo o que estava mal e decadente na Goa de cerca de 1850 (e concordo que deveria ser um sítio profundamente decadente - pelo menos aos olhos de um oficial britânico).
Burton teve a bondade de nos legar na sua publicação duas vistas de Velha Goa e uma descrição informativa de alguns edifícios da cidade abandonada e de
Pangim. À primeira obra impressa de
Burton ("Goa
and the Blue Mountains") seguiu-se uma produção monumental, que culminaria praticamente 30 anos depois com a tradução dos Lusíadas e apontamentos biográficos sobre Luís de Camões - de quem
Burton se havia tornado confesso admirador. Pelo meio, ficou por imprimir a primeira tradução do
Kama Sutra e vários outros textos queimados pela sua mulher após a morte de
Burton.
A carreira aventureira de
Burton foi muito diferente da de Thomas
Macaulay, advogado e que esteve poucos anos na Índia. Mas havia algo muito forte, algo de visceral, que unia os espíritos destes dois homens. Ambos acreditavam que pertenciam a uma raça superior com uma missão civilizacional; e ambos acreditavam que a mistura racial - pelo menos entre colonizadores e colonizados - era algo de nefasto, sujo, e contra-producente para a mesma missão.
Ambos acreditavam na segregação racial mas cada um à sua maneira. Podemos dizer que
Macaulay acreditava na segregação de forma "clássica" enquanto que
Burton - que era, sobretudo, um explorador e investigador - acreditava de forma mais "espiritual"...
Burton disfarçava-se frequentemente de Muçulmano e não se coibia de conviver de perto com todos os aspectos dos variados
natives, desde o Afeganistão ao Uganda ao Brasil. Gabava-se de ser tratado em pé de igualdade pelos sacerdotes
Bramânes ou pelos mestres
Sufi. Mas sempre com o nobre objectivo (a missão) de observar, estudar, anotar e
julgar (de forma moral) aquilo e aqueles que lhe interessavam. Assim, não espanta que os colegas de
Burton na Índia lhe chamassem de "
white nigger" e lhe acusassem de "
going native"...uma acusação que não tirava um minuto de sono a
Burton; mas que, se porventura tivesse sido proferida contra
Macaulay, poderia-lhe lhe ter causado algum (
dis)
stress.
Mas a verdade, por muito que custe a aceitar, é que eles tinham razão - pelo menos em relação à Índia. A mistura racial tinha efeitos contraproducentes para a dominação dos Europeus na Índia, pelo menos à escala que os britânicos ambicionavam na altura - e que obtiveram após 1858.
De forma muito simples, se os ingleses se misturassem com os Indianos, perderiam a sua "casta" - pior, tornar-se-iam "
halfcastes"...pelo menos aos olhos das castas superiores, especialmente dos
Bramânes.
Se havia algo que "unia" a Índia - tal como os Britânicos a viam em oitocentos - era o sistema de castas. Essa condição ancestral da sociedade assentava precisamente em noções de segregação, contaminação, etc. Naturalmente que os europeus não poderiam integrar o sistema, mas se não se misturassem, formavam um sistema paralelo - uma hierarquia competidora. Para além do mais, a insulação dos britânicos e do seu aparelho de administração conferia-lhes superioridade moral para julgar imparcialmente os Indianos de todas as castas; e o carácter laico do mesmo aparelho conferia-lhe autoridade para poder tratar todas as religiões da Índia por igual.
Com essa mentalidade, os britânicos implementaram um rígido sistema de segregação racial na Índia após 1858. Que vingou de forma assustadora. Quando
Mountbatten "lavou as mãos" apressadamente em Agosto de 1947, acelerando o processo de independência da Índia, fê-lo porque todo o sistema de segregação - religiosa, de castas e racial - estava prestes a desabar. Os ingleses saíram "ilesos" da sua missão colonizadora da Índia. E os filho de
Macaulauy vingaram até hoje.
A ideia de segregação racial foi o trunfo da colonização britânica na Índia. E tornou-se norma comum para todo o Império; mas a noção seria
certamente mais antiga. De qualquer modo, os povos Ibéricos com os seus impérios decadentes e corruptos, nomeadamente os portugueses (que misturavam, de facto, o seu sangue com o dos colonizados) eram o exemplo a evitar...